15 de jan. de 2015

Pombismo Moderno

O relacionamento interpessoal reinventado na Era Digital

Dois pombinhos se reconhecem pelo Facebook. Na vida real já tinham trocado alguns olhares desviados, dispersos e tímidos em ocasiões específicas. Olhares perdidos. Conheciam-se por vista. Ela sabia o nome dele, ele não sabia o dela. Mas ambos integram um mesmo grande e massivo círculo de amizades, que engloba e reúne jovens de todos os lugares da cidade. Fulano que conhece beltrano que estuda com ciclano. E, sem segundas intenções ou pretensões iniciais, ela o adiciona na rede social. Ele a aceita como outra qualquer. Não há menosprezo, há apenas uma ação habitual. Este primeiro selo é um ato comum. Pessoas adicionam pessoas frequentemente. Sela-se o primeiro contrato entre os pombinhos modernos. Contudo, a próxima ação requer sorte e acaso. E talvez um pouco de falta do que fazer. Ele vai falar com ela. Surpreendendo-se, ela visualiza a nova mensagem. À primeira vista, não crê no ato do rapaz. Sente-se feliz, superficialmente. Uma felicidade momentânea, rasa. Um brilho efêmero aos olhos de quem sente. Os dois mantêm um diálogo informal, às vezes diário, outrora semanal. Independente da frequência, o contato não se perde com facilidade. A carência humana costuma ser inata e presente até nos momentos mais felizes. Nenhum dos dois esbanja amizades a ponto de descartar um possível encontro. A fluência de uma conversa informal indica, suposta e temporariamente, um interesse pessoal de ambas as partes. Após inúmeros momentos compartilhados com o celular em mãos na maioria das vezes, o bate-papo virtual torna-se rotina. E os dois pombinhos modernos se conhecem. Ele nunca a escutou. Ela nunca o escutou. Nunca se tocaram. Somente conhecem a linguagem de cada um. Ele já sabe como ela inicia uma conversa ou pende para uma despedida. Ela é capaz de perceber se ele está chateado só pelo modo como escreve. Ele vasculha nas vírgulas, nos espaços mal dados entre suas palavras e nos emoticons utilizados por ela qualquer resquício de sentimento. Ela o faz igualitariamente. Até que finalmente marcam um encontro. Sela-se o segundo contrato entre os pombinhos modernos. A ideia de um encontro estava implícita, mesmo que indiretamente, desde o primeiro selo. Ele não sabe onde ela mora. E o lugar essencialmente necessário para cumprir o rito do Pombismo Moderno é o cinema. A lista de filmes em exibição é consultada. Classificam algumas preferências, entram em um consenso. O encontro será na próxima sexta. Os dias passam, as horas passam, os segundos passam. Sentimentos ficam, expectativas (a mãe das frustrações) são criadas. Sexta-feira, oito horas, na frente de uma loja qualquer de um shopping qualquer. Encontram-se. Lança-se o primeiro "olhar inteligente" entre os dois. A timidez descreve a situação. Cumprimentam-se. Trocam alguns dizeres lacônicos. Ambos se conhecem, sabem de histórias um do outro, já compartilharam vários momentos juntos no mundo virtual, e, ironicamente, julgam-se estranhos. Encaminham-se à sala de cinema. Andam separados. Não se tocam. Não conversam. Apenas se olham. Ela compra uma água. A boca seca aos olhos cegos e secos do primeiro encontro. Sentam-se em uma fileira no miolo da sala de exibição, mais ou menos ao centro. Ele disfarça olhares. Ela finge não repará-los. A exibição começa. Trailers passam e ele solta um comentário aleatório. Ela concorda gestualmente e volta a olhar para a telona. Ele está inseguro. Pensa que talvez ela também esteja. Entretanto, nenhum dos dois analisa a situação de fora do campo em que estão atuando, como estamos fazendo agora. Simplesmente protagonizam a cena, improvisam na maioria dos momentos, mas não há edição. O filme começa. Ela toma um gole d'água. Ele visualiza a sede e volta a ver o filme. Ela espera um beijo: o terceiro contrato. Ele também espera o beijo. O beijo que o desespera. Ele está calmamente desesperado, internamente alterado. Pensamentos mil. Procura-se um hiato, um instante exato para um calculado beijo. Ele age com cautela. Visualmente, ela transparece prestar atenção ao filme. Bobagem. Ela nem sabe sobre o que se trata o enredo. Ela apenas pensa nele. Meticulosamente, aproxima-se dela. Passaram-se quinze minutos desde o início do longa-metragem. Ele não quer passar a impressão de precipitado. Estão envolvidos, unidos, próximos. Mas não se tocam. Ele olha para ela. Ela olha para ele. Olhos nos olhos. Lança-se o segundo "olhar inteligente" entre eles. Cabeças se inclinam rumo à colisão frontal, impulsionada por um deles (que não vem ao caso). Involuntariamente, lábios anseiam pelo contato a outros lábios naquele impulso. Finalmente lábios são abocanhados. Sela-se (através de um selo bilabial) o terceiro contrato entre os pombinhos modernos. Vale a observação da cena: tudo escuro, as únicas luzes vêm da tela, o silêncio é provocado por sons diversos provenientes do filme. Aos dois, restam os dois. Naquele ímpeto, coexistem exclusivamente um ao outro. Outros selos são trocados ao longo do longa. Ambos aprovam o verdadeiro linguajar recém-provado e conhecido. O filme termina. O casal se levanta. Agora se tocam. Ouvem-se. As mãos dadas ao caminho da porta de saída representam o contrato final, o quarto contrato. Estão selados fisicamente. A durabilidade do relacionamento não entra na conta. Amanhã, ele pode esquecê-la. Ela pode se desencantar num novo embalo no dia seguinte. Contudo, nesta ocasião, formam um casal. Formam-se, mesmo que temporariamente, como um exemplo típico do Pombismo Moderno. Lança-se o terceiro "olhar inteligente" sobre eles. Dessa vez, a visão vem de uma terceira pessoa, talvez da fileira acima, que os visualiza como um casal de namorados, independente de o serem. E o cinema, esse abrigo de pombinhos, forma um novo relacionamento na Era Digital. Digamos que a casa escura funcione como um portal. Dois indivíduos, pré-unidos tecnologicamente, chegam ao local. Após a sessão, saem como possíveis amantes. E o cinema é o fornecedor da magia para a ligação entre essas duas pessoas. Imagine quantos casais o portal da sétima arte já formou, passageiros ou duradouros. Casais estes que saem da porta do cinema livres, como verdadeiros pombos a voar pela imensidão do céu. O Pombismo não entra em questões como o relacionamento ser ou não um bem durável ou a veracidade de uma relação a dois. Benditos sejam aqueles que creem no amor criado pelo Pombismo Moderno.